A vida que se conta como se fosse um livro separado por capítulos deixa entre cada fim de trecho um buraco que realmente somente páginas brancas podem preenchê-lo. É como se em um certo momento eu pingasse a caneta marcando um ponto final e depois virasse a folha e recomeçasse a escrever a continuidade de um corpo que não é mais o mesmo, mas representa o mesmo personagem. Agora vestido de nova roupagem e olhado por outras nuances de olhares. Como se ao terminar o capítulo intitulado criança apagassem as luzes e ao abrir novamente a cortina surgisse um adolescente desengossado, um ator ainda terminando de se vestir para contracenar com um cenário que venerava desde antes e que agora o coloca diante de holofote intenso, de falas onde o usual são palavras que seu idioma até então desconhecia.
Me disseram que poderia escrever minha história da maneira que eu quisesse - lembro quando isso foi dito minutos antes daquela luz de mesa cirúrgica ofuscar meus olhos que somente enxergavam vermelho. Também lembro do médico dizer para a enfermeira que eram 07:05, para que registrasse meu primeiro nascimento, e consequentemente meu primeiro falecimento. Não poderia mais habitar o antigo teatro... e neste instante esguelei de chorar, apesar disso não me lembrar, fiquei um tanto surdo com o grito de mim...
-Escreva o livro, mas respeite os limites dado a cada capítulo. Não ultrapasse o número de páginas, não ultrapasse o tempo de escrita...seja rápido, corra atrás daquele que você será daqui a pouco...Vá se despindo, vá vestindo.... Nãããão! não sobreponha nem fique pelado... corre, corre que agora vai recomeçar!
E já estava eu de novo sendo outro...ora de barba, ora me embreagando de primeiras masturbações, beijos, sexo...
E no enrosco de cada página branca que precedia cada capítulo "novo" havia momentos lindos que tenho a sensação que esqueci. E aquém das vozes que ditavam o tempo que se esgotava havia choros frenéticos gritados na cochia. Nada mais que o encontro entre meus eus que se entendiam com linguajar próprio...Pudia acordar-me (tanto no que diz de contratuar como de despertar) comigo mesmo que multiplos elementos podem sim habitar o mesmo corpo. E a subita imposições de vozes eram somente ventos exteriores que inventavam espaços e que serviam carapaças... O grito cessava, assim como o primeiro choro, contudo deixavam ressonancias que tremiam não mais pele visível, mas carne, visceras... e sempre nas cochias me encontrava com os outros eus...que juntos choravam, brincavam, sorriam das vozes. Vozes que eu fazia questão de torna-las surdas. Elas não conheciam meu alfabeto...
E assim agente vai vivendo... Apesar daquilo que pensa ler-nos. Eles não sabem de nada... nem eu mesmo sei.
As páginas brancas na verdade estão escritas de branco, eu lembro muito bem quando as escrevi. Tornaram marcas invisíveis com o tempo, mas ao tocar o papel eram recheadas de textura úmida. E confesso que o livro inteiro está escrito de branco. O que hoje escrevo aqui é apenas a versão que a voz acha ser a real...
O que detêm a mistura de todas as cores é o branco ou o preto?
Texto desencadeado após assistir "Buenos Aires 100 Km", 2004. Dir. Pablo José Meza
3 comentários:
"Aqui jaz um poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito
são suas obras completas."
Leminski
As páginas em branco.são assustadoras.
=D
pelo texto,emociona
paz e luz
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