quinta-feira, 16 de abril de 2009

Minhas páginas em branco

A vida que se conta como se fosse um livro separado por capítulos deixa entre cada fim de trecho um buraco que realmente somente páginas brancas podem preenchê-lo. É como se em um certo momento eu pingasse a caneta marcando um ponto final e depois virasse a folha e recomeçasse a escrever a continuidade de um corpo que não é mais o mesmo, mas representa o mesmo personagem. Agora vestido de nova roupagem e olhado por outras nuances de olhares. Como se ao terminar o capítulo intitulado criança apagassem as luzes e ao abrir novamente a cortina surgisse um adolescente desengossado, um ator ainda terminando de se vestir para contracenar com um cenário que venerava desde antes e que agora o coloca diante de holofote intenso, de falas onde o usual são palavras que seu idioma até então desconhecia.
Me disseram que poderia escrever minha história da maneira que eu quisesse - lembro quando isso foi dito minutos antes daquela luz de mesa cirúrgica ofuscar meus olhos que somente enxergavam vermelho. Também lembro do médico dizer para a enfermeira que eram 07:05, para que registrasse meu primeiro nascimento, e consequentemente meu primeiro falecimento. Não poderia mais habitar o antigo teatro... e neste instante esguelei de chorar, apesar disso não me lembrar, fiquei um tanto surdo com o grito de mim...
-Escreva o livro, mas respeite os limites dado a cada capítulo. Não ultrapasse o número de páginas, não ultrapasse o tempo de escrita...seja rápido, corra atrás daquele que você será daqui a pouco...Vá se despindo, vá vestindo.... Nãããão! não sobreponha nem fique pelado... corre, corre que agora vai recomeçar!
E já estava eu de novo sendo outro...ora de barba, ora me embreagando de primeiras masturbações, beijos, sexo...
E no enrosco de cada página branca que precedia cada capítulo "novo" havia momentos lindos que tenho a sensação que esqueci. E aquém das vozes que ditavam o tempo que se esgotava havia choros frenéticos gritados na cochia. Nada mais que o encontro entre meus eus que se entendiam com linguajar próprio...Pudia acordar-me (tanto no que diz de contratuar como de despertar) comigo mesmo que multiplos elementos podem sim habitar o mesmo corpo. E a subita imposições de vozes eram somente ventos exteriores que inventavam espaços e que serviam carapaças... O grito cessava, assim como o primeiro choro, contudo deixavam ressonancias que tremiam não mais pele visível, mas carne, visceras... e sempre nas cochias me encontrava com os outros eus...que juntos choravam, brincavam, sorriam das vozes. Vozes que eu fazia questão de torna-las surdas. Elas não conheciam meu alfabeto...
E assim agente vai vivendo... Apesar daquilo que pensa ler-nos. Eles não sabem de nada... nem eu mesmo sei.
As páginas brancas na verdade estão escritas de branco, eu lembro muito bem quando as escrevi. Tornaram marcas invisíveis com o tempo, mas ao tocar o papel eram recheadas de textura úmida. E confesso que o livro inteiro está escrito de branco. O que hoje escrevo aqui é apenas a versão que a voz acha ser a real...
O que detêm a mistura de todas as cores é o branco ou o preto?

Texto desencadeado após assistir "Buenos Aires 100 Km", 2004. Dir. Pablo José Meza

3 comentários:

Clari... disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clari... disse...

"Aqui jaz um poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito
são suas obras completas."

Leminski

Joana Camila disse...

As páginas em branco.são assustadoras.
=D
pelo texto,emociona
paz e luz