quarta-feira, 17 de junho de 2009

Zoé

O vento abre a porta do quarto onde estava a dormir. Ao acordar percebo que é frio. Os olhos se fragilizam com o clarão cinza que vem do sol coberto de nuvens. Acordo.
Dentro da casa estou só. Sem acompanhamento de trilha sonora nem cheiro de comida que está em fogo brando. Sem fumaça de insenso nem andares, respirares, falares de outro.
Lá de fora chega barulho de furadeira e ônibus a freiar. Luminosidade de raios solares que brincam de entrar e sair por entre os cômodos.
Desço pela escada que me leva dos quartos e banheiros até a sala e cozinha. Abro todas as janelas que se fecharam em madrugada escura e mais gelada que agora. Ligo a vitrola e escuto música - balada, chorosa, dançante, ruidosa. Leio livro, anoto. Preparo o almoço - corto substâncias, cheiro tempêro, ligo chamas e toco em água.
A meu convite elas se juntam ao meu dia. Cada coisa que se move e afeta. Invade a casa de recheio. Me acompanha. Sem ninguém.
É calor que brota. Som que vibra meu ouvido. Autor que diz em pensamento meu, no eu. É cigarro que queima vagarosamente enquanto olho as folhas que se mexem. Minhas plantas dão sinal de vida. Explodem em novo - brotos, folhas de um verde claro.
Estou acompanhado de mundo. Eles correspondem da melhor maneira. Respeitam minha solidão com velocidades múltiplas. Contornam meu eu com vida cósmica.
Eu sou apenas aquele que acorda. E isso não é pouca coisa.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Tempos de outonar...

E os sonhadores? Podem viver em terra firme, de pé fechado em calçado e abrir de olhos compassados com despertador de manhãzinha? Sim, meu caro!
MAs por enquanto vou acordando um pouco depois das nove, almoçando dia às 12, dias às 15. A noite sopa de chuchu, de dia músculo cozido com suco de laranja e alhos...alhos inteiros.
Assim vai sendo ... e a casa ganha goteira, e o frio invade a janela que se jogou em dia de risos, que se multiplicou em cacos cortantes de madrugada quieta.
Chá mate, filmes pertubadores e combinações de gargalhadas, de choros amigos, ligações importantes que dirá se vamos ou fico, outras ligações bem menos burocráticas que gritam, que cantam "vamos, Vamos". Pra onde não se sabe...
Produção de si... os sonhadores correm por mim! Ainda bem...

Fala, amendoeira (1957) Carlos Drummond de Andrade

«Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incómodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

- E vais outoneando sozinha?

- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

- Somos todos assim.

- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

- Não me entristeças.

- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.»