segunda-feira, 20 de abril de 2009

Um estranho "ameaço"


As portas das praças estão abertas. Mas ninguém se atreve a atravessá-las, e menos ainda em parar embaixo de alguma árvore e sentar. Vejo apenas, da janela de meu apartamento, sombras solitárias balançadas pelo vento da madrugada.
Aonde aprisiona-se cada mundo?
Em cada casa acompanhado de outros mundos supostamente conhecidos... MEU computador, MINHA televisão, MINHA família, MEU cachorro e assim por diante.
Após ouvir histórias de assalto pela redondeza de MINHA casa fui consumido por um andar diferente de MINHAS pernas pelas ruas. Desconfiado, parecia que os passos acelerados poderiam me levar rapidamente ao território que aproxima o Eu ao MEU. E estrangeiro de minha raça, humana, vejo naquele que caminha uma suposta ameaça, um suposto invasor de mim. E não é apenas medo de ser abordado com um revólver ou um estilete. Vejo nas ruas da cidade, no público que compõe o público, ameaças de mulheres que também aos passos rápidos enxugam lágrimas que brotam de si. Me ameaço quando corpos estendidos pelo chão se tornam meros objetos de uma decoração invisível. Me ameaço quando me perguntam as horas e quando me pedem moedas.
Nos sinais, ao atravessar as faixas brancas pintadas no asfalto negro, vejo os carros -à espera do sinal verde- simultaneamente fecharem suas janelas para que não haja invasões, devido a ameaça.
Mas que ameaça é esta que no repente do andar, que no virar do pescoço se mostra, se sente? não sei o que ela é, mas invisivelmente vem se esconder em mim.
Como se pelas ruas os mundos desconhecidos tivessem grades. Como se eu fosse bexiga que lentamente se esvazia.
Uma ameaça-vírus que se propaga no invisível. Com cada notícia de assalto, com cada muro erguido em condomínios, com o espetáculo gerado por crianças arremessadas de prédios e namorados que matam amores.
Mas não são notícias, nem assuntos que me invadem como se em mim houvesse apenas receptáculo de horrores. As ameaças perduram pois nelas consigo firmar o confortável lugar do comodismo.
Sendo assim, me ameaço. Me ameaço para tentar salvar esse cotidiano redondo, sem relevo, que carrego todo dia. Para que somente em minha companhia esteja o conhecido, o previsível... As praças de madrugada continuarão vazias. Nos ônibus os assentos com dois lugares vagos serão preenchidos primeiro. Nas filas continuará o solitário pensar de vidas ameaçadas.

Vamos lá, seres humanos! A verdade não existe, se desfaz no encontro com o novo.
E grito o que em mim me ameaço, para que eu possa me dissolver, me misturar, me expandir com um "oi", ou então com uma afirmação: "Você é meu companheiro"...e assim estabelecer diálogo. Nada tem que ser como parece ser...

Diálogo (Caio Fernando Abreu)

A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro, Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: È.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: È.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, você não vê?
A: eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?
(ad infinitum)



Texto desencadeado após encontrar-me com o filme "O Anjo Exterminador", 1963. Dir.: Luis Buñuel

5 comentários:

Anônimo disse...

A cada dia que passa, mais ficamos presos a nosso "mundinho" alternativo,como sai p/ passear numa pracinha se em sua maioria estão tomadas de viciados, prostitutas e mendigos.
Prefiro não arriscar.
Beijinhos de Rozangela Melo
Se quiser retribuir a visita, fique à vontade
Fazemos cinema amador
Visite nosso blog
www.cgfilmpictures.blogspot.com

Cuca disse...

Valeu pelo comentário, Rozangela!
Mas quem são essas pessoas -viciados, prostitutas e mendigos? além do que elas representam?
E que risco é esse que nos trava de andar pela praça pública- lugar onde os homens se encontariam para exercer o coletivo, o político?

Nely L. disse...

Seria a cidade, o rio de janeiro? nossa, me identifiquei tanto com a cena da praça...

Cuca disse...

Eu escrevi tomando como referencial Campinas, onde moro atualmente.... mas dificilmente vejo praças habitadas! Desde São Paulo- metrópole- atpe Guaíra....uma cidadezinha de 40 mil habitantes.... Acho que as praças de maneira geral estão se esvaziando.....

Clarissa Batistela disse...

Vamos então...não há nada de mal e nem de bem. É simpliesmente isso, e nada mais